Professor da USP participa
da descrição de dinossauro de 220 milhões de anos no Rio Grande do Sul, o
Sacissauro, nome dado em homenagem ao famoso personagem do folclore
brasileiro
ROSEMEIRE SOARES TALAMONE E FERRAZ JR., DE RIBEIRÃO PRETO
O Brasil tem
literalmente o seu Saci. Trata-se do Sacisaurus agudoensis, uma espécie de
dinossauro até então desconhecida da ciência e que recebeu esse nome em
homenagem a uma das mais populares figuras do folclore brasileiro, o
Saci-Pererê. O Sacisaurus viveu no Brasil há 220 milhões de anos, no período
Triássico, e está entre as espécies mais antigas do mundo. A descoberta da
espécie traz uma nova perspectiva sobre o período em que os dinossauros
viveram no Brasil.
Fósseis de quase 20 animais dessa espécie
foram encontrados em Agudo, interior do Rio Grande do Sul, em 2001, e
classificados no ano passado. Daí o agudoensis. Entre os 50 fósseis
localizados, cerca de 40% do corpo do animal, foram identificados 19
fêmures, com uma curiosidade: todos da perna direita. “Começamos a brincar
com isso e fizemos imediata associação com o Saci, que só possui uma perna”,
revela o professor Max Langer, do Laboratório de Paleontologia da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP,
responsável pela classificação do animal e um dos autores do trabalho sobre
a descoberta, publicado na edição de 17 de outubro da revista inglesa
Historical Biology. Os pesquisadores só não lembraram que a perna que o Saci
tem é a esquerda. Outra brincadeira: “Começamos a falar que essa era a perna
perdida do Saci. Resolvemos então fazer a homenagem dando o nome de Saci à
nova espécie.”
Segundo o professor, o Sacisaurus teria 1,5
metro de comprimento por 50 centímetros de altura e é, até o momento, a
primeira espécie do grupo dos ornitísquios encontrada na região. Os
dinossauros se dividem em dois grandes grupos, os saurísquios, herbívoros e
carnívoros, e os ornitísquios, todos herbívoros. O registro de ornitísquios
na América do Sul é escasso. Só havia registro deles na Argentina, umas
cinco ou seis espécies diferentes. O maior número de espécies desse grupo
foi encontrado na América do Norte e na Ásia. “No Brasil, só tínhamos
registros de ornitísquios com base em pegadas na Paraíba e em São Paulo.
Sabíamos que esses animais tinham vivido por aqui, mas não havíamos
encontrado nenhum esqueleto ou osso. Esse é o primeiro ornitísquio
brasileiro”, lembra Max Langer. Mais antigo que o ornitísquio brasileiro,
segundo Langer, é o Silesaurus, descoberto na Polônia.
Escavações de
pesquisadores em busca de fósseis de dinossauros:
novas luzes sobre a trajetória dos grandes répteis sobre a face da Terra
O achado no Rio Grande do Sul não era um
esqueleto completo, mas o encontro da mandíbula foi fundamental para a sua
descrição. “No campo não tínhamos idéia do que se tratava, somente de que
era um dinossauro herbívoro. Nele encontramos também marcas de dentes de
dinossauros carnívoros, ou seja, calos ósseos que indicam a recuperação
dessas mordidas”, diz o professor Jorge Ferigolo, pesquisador do Museu de
Ciências Naturais do Rio Grande do Sul e responsável pelo achado em Agudo.
O Sacisaurus tem vários detalhes anatômicos
que o diferenciam de outros do mesmo grupo. Entre essas estruturas está o
pré-dentário, um osso que fica na frente da mandíbula e que suporta um bico
córneo parecido com o de uma ave ou tartaruga. Segundo Langer, esse é um
osso que na maioria dos ornitísquios é ímpar, com uma única ossificação. No
Sacisaurus são duas ossificações, indicando que esses ossos se fundiram ao
longo da evolução dos animais do grupo, ajudando a entender o surgimento
dessa característica única dos dinossauros ornitísquios. “O Sacisaurus, por
ser um dos ornitísquios mais antigos, estaria no meio do caminho da formação
do pré-dentário”, diz Langer. Ajuda também a entender como o animal se
alimentava. “Com isso ele triturava um pouco melhor o material vegetal.”
A maioria dos dinossauros herbívoros não
era capaz de triturar uma matéria vegetal, como faz uma vaca, por exemplo.
Já os ornitísquios, com esse pré-dentário, trituravam o material vegetal e
obtinham um melhor aproveitamento do alimento, acreditam os pesquisadores.
“O fato de ser um animal primitivo, sem todas as características já
conhecidas dos ornitísquios, é que o torna interessante. Não faz sentido na
evolução dos vertebrados a bobagem consagrada de que todos os ornitísquios
tinham necessariamente osso ímpar à frente da mandíbula. O Sacisaurus é
muito primitivo, justamente por isso nos permite desvendar a evolução do
grupo”, destaca o professor Ferigolo. Também na bacia o Sacisaurus tem um
osso púbico que está voltado para frente, o normal, e não para trás, como
nos demais ornitísquios, daí o nome do grupo, que significa pelve de aves.
Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, as aves são descendentes dos
saurísquios. Outra característica específica apontada pelos pesquisadores é
que, na tíbia, o Sacisaurus tem um osso que se projeta para baixo e para
fora, também típica de ornitísquios.
No Rio Grande do Sul se localiza a única região com afloramento de rochas
com dinossauros do período Triássico no País. A cidade de Agudo está
localizada nessa área. Os fósseis do Sacisaurus foram encontrados na zona
urbana do município, na periferia da cidade. No local foram encontradas
outras cinco espécies de dinossauros, em 1929, quando os primeiros fósseis
foram localizados. Todas essas cinco espécies são do grupo dos saurísquios,
que incluem animais de hábitos carnívoros e herbívoros.
O Sacissauro reconstituído: uma das espécies mais antigas do mundo
Controvérsias – A
classificação do Sacisaurus causou controvérsias no meio científico. Mas,
para os pesquisadores, justamente o que o torna único, o pré-dentário duplo,
é que o deixa tão interessante. “O fato de os animais do mesmo grupo
apresentarem um único pré-dentário mostra justamente a evolução dos
ornitísquios”, diz Langer. O trabalho científico com essa descrição não foi
aceito para publicação por duas importantes revistas, Proceedings of the
Royal Society e Journal of Vertebrate Peleontology. “As características
únicas que descrevemos são típicas de ornitísquios, não podemos simplesmente
descartar essas evidências”, enfatiza Langer. Entretanto, o pesquisador
lembra que em ciência nada é definitivo. “Nunca temos certeza de nada, por
isso estamos trabalhando num estudo mais detalhado.”
No sítio fossilífero gaúcho, o Sacisaurus
vai se juntar às espécies Spondylosoma absconditum, Staurikosaurus pricei,
Saturnalia tupiniquim, Unaysaurus tolentinoi e Guaibasaurus candelariensis.
O grupo liderado por Ferigolo trabalha, desde 1996, no Projeto Pró-Guaíba,
do governo do Estado do Rio Grande do Sul, que tem o objetivo de criar
parques paleontológicos para o turismo nessa área. Os pesquisadores são
responsáveis pela demarcação das áreas para preservação. “Durante o
desenvolvimento desse projeto fomos nos deparando com vários fósseis de
dinossauros que nem imaginávamos encontrar nesse lugar. O Sacisaurus foi uma
das muitas surpresas que tivemos”, ainda festeja Ferigolo.